quarta-feira, 28 de novembro de 2007










(fascículo 13)

fig 6 - A Nau entra na água


- "Velocidade demasiada", cogitava naquele preciso momento, desassossegado, o Mestre Manuel Maria Mónica.
Os gritos da multidão, as palmas, as exclamações, os urrah..!, estoiraram, provindos daquelas gentes que nunca tinham visto maravilha maior.
De facto uma embarcação a descer na carreira, é algo de semelhante a uma criança a escorregar do ventre materno ; a água aguarda-a, como a «aparadeira» aguarda o recém nascido : - abrindo-lhe os braços, acolhendo-a com todo o jeito, desvelo e cuidado. E o choque do seu encontro com a água, a frescura que perpassa por toda a obra viva, é o açoite dado a recém nascido para o despertar para a vida que então começa.
Quieta, espelhada e macia, reverente e atenta, a água da laguna fez pois o seu papel, abrindo-se, convidativa, para dar passagem à Nau e acolhê-la no seu seio, serenamente. A aragem - pouca coisa - era contudo a bastante para desfraldar os pendões da Ordem de Cristo, a cruz do templo, exibida no cimo dos mastros, bem à vista de todos. No porta estandarte, a ré, baloiçava a flâmula real monárquica, branca, com as torres encimadas por uma coroa, não apenas digna dum Rei, mas sim, de um «Senhor do Império». Exactamente os símbolos que as outras irmãs suas, de antanho, as naus das armadas das «Índias e dos brasis», tinham, elas também, hasteado. Nuns casos, com suprema ufanação a amigos ; noutros com ostentação soberana, e como aviso sério, a inimigos.
Em terra uma embarcação é um corpo estático impressionando desde logo pelo seu volume - caso da Nau - ao vislumbrar-se em toda a enormidade as suas obras vivas. É feita, contudo, para pousar na água, onde adquire e exibe, toda a elegância das suas linhas : - «diz-me» como pousas na água e dir-te-ei que barco vais ser, assim o diziam os entendidos em muitos saberes marinheiros. E linhas mais harmoniosas, desenvoltas, e simultaneamente mais suaves e elegantes, como nunca se tinham visto.


(cont)


sábado, 24 de novembro de 2007

(fascículo 12)

2 - BOTA ABAIXO

O representante do Regime parecia ter aqui encontrado o lugar ideal para sermonário adequado ao intento de revivificar o destino Pátrio. Oratória arredondada, palavras enredadas umas nas outras, inflamadas e exaltadas no fervor. Que a partir de determinada altura, subindo de tom, voaram extravagantes - a ponto de chamar à Nau, a «Esposa da Pátria»! - e soaram desmedidas quando enveredaram pelas promessas seguras (?!) do regime :
«Pão (farto) para os trabalhadores» - que feita a Nau nem por isso acharam fartura na retribuição,
«Paz para o povo» - que por sinal se começava a mostrar bastante inquieto com o alongar do palanfrório, e a que pouca importância concediam, até porque se não ouvia,
«E muitos fffs - Fátima, Futebol e Fado», as três «vitualhas» que pensava o ilustre Governante, seriam suficientes para um bom português

fig 5 - O imponente castelo da Popa

ficar empanturrado e deleitosamente agradecido, à sina de, por aqui ter nascido, neste cantinho sortudo, na beira mar encalhado.
O «Viva Salazar!!!» com que encerrou o palanfrório, mereceu uma resposta pouco condizente, se comparado com «O Viva Portugal», que pareceu ter desencadeado os mais escondidos orgulhos naquelas gentes que logo responderam - agora sim, em uníssono ! - em alto vozear,
«VIVÒOO!!!…».

Já S. Exª rev.ª, O Bispo, entregara o báculo e empunhara o hissope, aspergindo em gestos compassados da mão, de cima para baixo, da esquerda para direita, enquanto solene esporteirava o latinório :
«Et benedictio Dei Omnipotentes, Patris et Filii Spiritus Sancti»….
Tinha chegado a hora.
O Mestre deu ordem para se libertarem as talhas que seguravam a embarcação, que solta, liberta, desata a escorregar pelo plano inclinado. Primeiro suavemente, depois acelerando centímetro a centímetro, metro a metro, acompanhada por um burburinho vindo da multidão, assombrada com a imponência de um barco a movimentar-se, célere e imparável, à procura do seu elemento natural.

(cont)

terça-feira, 20 de novembro de 2007

(Fasciculo 11)


- “Que não, …não temesse…” chegavam-lhe vozes provindas de quem se dizia, saber muito! E que do alto do mesmo afirmavam, que o «Metacentro» estaria ainda em nível seguro, mesmo depois de realizada a operação de aliviar lastro.
Não sabendo bem o significado «exacto» do palavrão, o Mestre sabia, contudo - de saber experimentado - o que o mestre Zé Bola «da sala do Risco» lhe sussurrara ao ouvido, havia que tempos. E isso era bastante para desassossego e motivo de uma certa inquietação. De facto,
…antes de traçar no chão da enorme sala de risco as formas que permitiam tirar o molde ao cavername, era habitual fazer-se um modelo da embarcação, em escala reduzida, no qual se marcavam os cortes transversais, deles extraindo as curvas reais do cavername que traçadas na sala de risco à escala natural eram dali transportadas para o corte. O modelo, tinha assim, para tal fim, sido executado em pau santo.


CAPACIDADE



No final do Séc. XVII e inicio do Séc. XVIII, a tonelagem de uma embarcação media-se em TONEIS.
Havia ligeiras diferenças, conforme o tipo de liquido armazenado (azeite e ou vinho)
Em Portugal um Tonel correspondia a 1.250 litros
Em Inglaterra o «Wine Ton» correspondia a 1.144,08 litros .
A Tonelagem total «peso de água deslocada» era medida assim pelos tonéis embarcados, acrescentando-se a este valor mais um terço da carga.
Como fórmulas aproximadas, era usado:
Espanha e Portugal

½ boca x calado x comp coberta 19
Tonelagem = -------------------------------- x --
8 20
Inglaterra
Comp. quilha x boca x calado
Tonelagem = ---------------------------------- x (1+1/3)
100

( Quadro 2)


Mas o mestre «Zé» que dedicava gosto especial em guardar para si uma réplica do mesmo, fez um outro, em tudo idêntico, só que, desta vez, elaborado em madeira de pinho por questão de facilidade de trabalho, pois é madeira muito mais macia, mais fácil de aparelhar.
Ficou espantado, quando, ao colocar os dois modelos no tanque para apreciar o caimento e a linha de água, constatou, intrigado, que o modelo feito em pau santo flutuava bem, enquanto o de pinho, de imediato, se tinha voltado, e deitado na água (do tanque) a todo o comprimento do casco. Pensou para si no porquê (?). E apenas, entre dentes, abordou o acontecimento com o mestre Manuel Maria, que o descansou :
- Isso lastra-se…
E a conversa morrera aí.
Só que no dia de todos os acontecimentos, no espírito de Mestre Manuel Maria, aquele facto viera-lhe por diversas vezes à ideia, apoquentando-o, trazendo-lhe ralado desassossego.
- O lastro mínimo com o fim de limitar o calado, seria suficiente para garantia da estabilidade ?... perguntara-se, vezes sem conta, a si mesmo, o inquieto Mestre.

(cont )

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

(fascículo 10)


Características principais da Nau Portugal

Comprimento - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 42,200 m
Boca - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 11,400 m
Pontal (do fundo da carena - a meio - à linha recta
dos vaus do pavimento superior--------- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 7,500 m

Calado inicialmente previsto :
Calado final : - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 3,12 m proa e 4,52m à pôpa
Nº de canhões : - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -48
Nº Mastros : - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 3

Quadro 1

Certo é que, naquela manhã festiva, Mestre Mónica se sentia inquieto. Logo desde muito cedo tinha subido e descido a escada de acesso ao convés, tantas vezes que já lhe perdera a conta ; desde o nascer do sol que Mestre Manuel Maria (já) investigara todos os pormenores com extrema minúcia, em especial, a carreira e o carro do deslizamento, inspeccionando atentamente as talhas de fixação que prendiam a nau e a mantinham imobilizada. Acontecera-lhe dar com o olhar, por vezes -demasiadas vezes - pousado no bojo arredondado, sem dúvida enorme no porte em confronto com as delgadas e pronunciadas saídas de água, à ré. Porquê ?! : - talvez não o soubesse explicar. Dedicou mesmo especial atenção ao trancamento do leme, de modo a que este não empachasse na água, aquando da entrada da Nau, na ria.
Em todos os momentos que antecedem o «bota-abaixo» era normal que o Mestre fosse possuído por nervoso miudinho. Lançar um barco de centenas de toneladas, carreira abaixo, era um exercício de risco assumido ; vê-lo fender a água, vertiginosamente impulsionado por toda a inércia transformada em movimento acelerado, era de arrepiar os cabelos. Para o Mestre, porém, era coisa que lhe não bulia em demasia com os nervos, apenas era capaz de criar algum desconforto pois que sabia bem o que saía das suas mãos. Contudo, naquele dia, algo - o quê (?) magicava…- estava a ser diferente…
A verdade, era não ser aquela uma obra vulgar ; ela era, sem dúvida, o feito da sua vida, uma daquelas passagens que fazem a distinção entre o vulgus e o suserano, entre o imémore e o perpétuo. E por isso se sentia, naquele celebrado dia, algo diferente do habitual, inquieto mesmo.
Feito um rápido cálculo ao deslocamento, de uma maneira expedita e aproximada, concluíra-se haver a hipótese de o deslizamento sobre a água, atirar a embarcação sobre o bordo norte do canal. Que era de lodo - logo se disse - assim tranquilizando os receios de tais conjecturas e avisos. A mais, sendo fundos pouco consistentes, se tal sucedesse, facilmente a embarcação abriria cama suficiente para neles «apoitar».
Mas, à cautela, retirou-se lastro à Nau, limitando-se assim, tal risco.
Com esta acção aligeirara-se o calado ; era certo. Mas o Mestre não ficou sossegado. Sabia que com este procedimento se poderia estar a correr ao encontro de um outro risco, esse bem maior do que o possível encalhe. Muito maior!
(cont)

sábado, 10 de novembro de 2007

(fascículo 9)
1.5 - INQUIETAÇÃO NO MESTRE

Mestre Manuel Maria Mónica, construtor naval já então afamado, tinha crescido a ver nascer navios ; já vira certamente nascer tantos, quantos os anos que somava de vida. Desafiado para concretizar tão descomunal obra -a da «Nau Portugal» - não teria precisado de muito tempo par dar resposta positiva a tão desarcada e colossal, como desafiante e temerosa empreitada, mas para a qual se sentia plenamente à altura. Talvez dito de outro modo : mestre Mónica sentia-se mesmo talhado par a mesma, ou até para ela predestinado, pois que se a obra era grandiosa e vasta, basta era a sua prática, e seguro o seu saber. Próprios de um mestre exímio na arte, daqueles que nascem com o prodígio de precisarem, num simples olhar, o jeito suficiente para afagar um corte, de modo a que o tabuado se ajuste, doce e aconchegado ao cavername, permitindo que o costado nasça macio e se desenvolva donairoso. Lindo para se ver, mas e também, lestos para navegar.
Os veleiros saídos da mão de Mestre Mónica tinham seguros, reputados e afamados dotes, por demais conhecidos. Robustos o bastante para resistir a todas as imprecações do mar, fossem elas de que tipo e dimensão fossem, e por mais danação que aquele tivesse, ou estramboto mostrado ; belos e equilibrados no poisio na água, e finos, capazes como poucos, de boas e despachadas singraduras.
Era porém certo que no caso da Nau tinha havido pouco tempo para um projecto cuidado e rigoroso, que obedecesse a detalhes técnicos precisos, para se cumprirem as boas práticas da construção naval. Tomada a decisão política para a construção da Nau, pouco se tinha feito para lá de, em termos gerais, se decidir a reprodução de uma embarcação igual a tantas outras que se teriam construído no passado, réplica dos galeões que nos Séc. XVII e XVIII tinham povoado os mares - todos os mares de todos os oceanos - cruzando-os, em incessante tarefa de carrego de riquezas, de ouro, jóias, sedas e especiarias, ou em acto de corso predador, fazendo-as passar num ápice de mãos reais para as mãos de ambiciosos e obscuros desígnios.
Para dar corpo à Nau elaborara-se, apenas e só, um esboço aproximado, um bosquejo de um plano geral de formas, confiando-se negligentemente - muito mais do que a boa intenção aconselharia - no saber do Mestre Mónica, o qual teria exigido pouca pormenorização das carenas, e ou, dos cálculos e traçados complementares, sendo-lhe bastante um conceito geral das formas requeridas. Pareciam os promotores -isso sim! -, muito mais preocupados com o imperiosamente majestático, sobrante de deslumbro impante, encarregando de tal cometimento, Leitão de Barros, o encenador oficial dos grandes momentos de fausto do regime, para o tratamento artístico do interior, que se pretendia, soberbamente rico.
(cont)

terça-feira, 6 de novembro de 2007

(fascículo 8)


1.3 - NERVOSISMO EVIDENCIADO NO MOMENTO DECISIVO


Pairava natural nervosismo : corriam de «boca a ouvido», uns certos rumores sobre os reais atributos de estabilidade da Nau, provindos certamente de maléficos incréus que espantados com aquelas obras mortas esguias que à ré subiam por ali acima, alcandorando-se a alturas inexpectáveis, murmuravam:
- Desmesuradamente «alevantadas» : …visando encarvoar a obra.
Para mais sendo certo que tais formas contrastavam com a habitual linha rasteira do pontal dos lugres bacalhoeiros, que, finos e esguios nos enlaçamentos, macios e alongados de linhas, eram por estas bandas construídos, e aqui «botados» à água, aprontando-os para o cumprimento de insubmissa e árdua missão, nos mares gelados do Atlântico Norte, na Faina Maior.
Exagero de comentário tal desmesura ? Verdade (?!)... ou simples ditos badalados no jeito - eu bem dizia !... -, aviso tão costumado na conversa pós-consumação, quando, «trancas à porta», não são mais do que mera inutilidade, chuchurreio desperdiçado depois de casa esbulhada.
Adiante… que a maré não espera por «pescador»...


1.4 -… E A NAU CORREU PARA A ÁGUA

A maré repontava. Não se poderia perder o momento que antecede o seu espraiar, no descanso que antecede a viradeira, altura em que sossega, apostada em quietação merecida, depois da meia dúzia de horas na trabalheira incessante de carregar água para dentro das cales e canaletes, quais veias que levam a água a todos os cantos do paul lagunar.
Cálculos rigorosos tinham sido levados a cabo, no intuito de determinar o exacto momento da «preia-mar», porquanto os responsáveis tinham alguma preocupação sobre a fundura do canal, ser ou não, suficiente, para aceitar o calado exigente da Nau, notável e invulgar, excedendo tudo quanto até aí se tinha posto, por estas bandas, a flutuar.

(cont...)