sábado, 29 de dezembro de 2007

(facículo 17)



O Ministro imaginava a cólera de Salazar, personalidade implacável e profundamente arreigada aos símbolos pátrios, que se auto assumia guardião das virtudes da gesta. Pensou - e até previu - o inevitável rolar de cabeças que tal infeliz desfecho para obra tão grandiosa, iria, por certo, despoletar. Até o seu lugar estaria - imaginou ! - comprometido, apesar de peça fundamental, associada às grandes realizações propagandísticas do regime. Salazar não costumava perdoar erros de clara incompetência. E no caso, a mesma, estava ainda associada a incúria negligente, o que, pela dimensão simbólica - e pública ! - do acto, ultrapassava a mera questão de imprevidência. Imperdoável !
No sentido de limitar os danos o Ministro enviou de imediato para Lisboa um telegrama, onde retocou a gravidade do acontecimento. E mesmo sem saber em pormenor, como iria ser, apressou-se a garantir, contudo, que a Nau estaria a tempo de ser exibida em Lisboa, na Exposição, depois de posta a flutuar. O que assegurou, iria acontecer dentro de breves dias (?!). Que se prolongariam por três longos meses.


3 - A ENTRADA EM CENA DO ENGº SALVADOR SÁ NOGUEIRA, DA A.D.G.P.L.

Em Lisboa, já na segunda-feira seguinte ao infeliz acontecimento, o Ministro não perderia tempo em convocar com urgência o engº Salvador de Sá Nogueira, reputado técnico da Administração Geral do Porto de Lisboa -o mesmo que ultimamente dirigira o resgate de vários navios acidentados, e de entre eles, o do rebocador «Cabo Sardão» e da «Draga Alcântara», técnico por isso com larga experiência na matéria - conferindo-lhe plenos poderes e excepcionais liberdades para recrutamento de meios, no sentido de recuperar com a máxima rapidez, a «Nau Portugal». Sem olhar a despesas. Estava em jogo o orgulho nacional, achincalhado, exalviçado, salpicado de lama pelo acontecido, cuja recuperação não tinha preço, nem dilação.

sábado, 22 de dezembro de 2007

(Fascículo 16)


De resto, o silêncio que se tinha instalado em terra era sepulcral - igual ao do peixe no fundo da canastra da pescadeira - entrecortado, aqui e ali por conjuros provindos de uma ou outra boca mais arrebatada, rorejados atabalhoadamente. «O Portugal» que há minutos parecia querer retomar em mãos «novo destino», transformara-se em corpo morto, «baleia» disforme boiando nas águas tranquilas da laguna, que lhe serviam de cama para repouso inesperado.
A majestade já não era. Fora-se, com a cambalhota da Nau. O orgulho do Portugal dos «gama e cabrais», o Portugal do conhecimento, genial criador de navios que mais do que capazes de ir por aí fora - Duc in altum! - sem limites de lonjuras no mostrar de como se poderia navegar contra o vento - de «cara à vela» no volteio de ventos e marés - afundara-se.
O Ministro da Obras Públicas, presente, assombro estampado no rosto, olhava atónito e especado para o desenlace da aventura ; estava pálido, dor acerba e pungente reflectida no olhar aturdido por tamanho infortúnio. Num ápice tinha interiorizado toda a dimensão do problema. Não por temer que este se espalhasse nos jornais ao outro dia ; a máquina da censura salazarista encarregar-se-ia de lhe aplainar os contornos do ridículo.
E assim sucederia, de facto, pois nos jornais do dia seguinte, podia ler-se que o acidente se teria ficado a dever ao facto de uma das talhas dos cachorros da carreira se ter partido, fazendo elevar a Nau, que perdendo (?) o seu centro de gravidade, teria dado origem a uma aparatosa inclinação do barco.
Mas no exterior o acontecimento seria motivo de chacota. E a aparatosa inclinação viria expressa no simples e consagrado dito da «quilha a fazer de portaló».
No jornal local, «O Ilhavense», nada se referia do acontecimento para lá de um artigo da autoria do Bispo de Aveiro, que pouco ou nada se detinha no acontecimento. E nos números seguintes, o jornal limitar-se-ia a umas breves notas sobre a recuperação da embarcação. Resultado do lápis azul da censura a riscar, diligente e pressuroso, tudo o que transpirasse excessos informativos capazes de macularem a intenção do acto. Tal como sucederia com todos os órgãos de informação, escritos ou falados, no País : só pequeníssimas notas, idas no sentido de desvalorizar o acontecimento, eram permitidas pelos esbirros censores.
Fora do País, apesar dos esforços diplomáticos, as coisas espalharam-se de outra maneira, de um modo pouco dignificante e consentâneo para com o nosso lustroso passado de gentes marinheiras, gerações inteiras repentinamente ensombradas por esta nódoa que viera engelhar a sua imagem de quatro séculos de grandes feitos.
Por outro lado, a verdade, dura e crua, mesmo que atabalhoadamente desmentida, era a de que a comparência da Nau na Feira de Exposições estava de todo comprometida, muito embora a censura se apressasse a passar a notícia de que o atraso era de apenas uns simples dias. Aquela que seria a maior âncora, a mais emblemática peça da Exposição do Mundo Português, destinada a glorificar o Portugal do Império, jazia inerte, pousada no lodaçal da Ria, negando-se a comparecer ao encontro com gentes que vindas de todos os lados se preparavam para a visitar, ávidas de ver ao vivo, o que se prometia ser um deslumbre de fausto.

(cont)

domingo, 16 de dezembro de 2007







(fasciculo 15º)






A Nau parou, finalmente travada pela água ; as pequenas embarcações que a aguardavam na ria, pressurosas, afundaram remos para dela se aproximar, com o fito de a apreciarem de mais de perto.
Quieta um minuto, imponente, deu repentinamente para se inclinar para estibordo e, determinada, sem hesitar, parecendo obedecer a forças estranhas - e bem o eram ! - voltou-se num ápice.
«E fez da quilha… portaló», como se diz na gíria marinheira.








f ig 10 - A Nau começa a inclinar-se


Um arrepio percorreu a multidão. Silêncio maior só nos cemitérios. Que logo se tornou em prolongado murmúrio provindo de desalentada imprecação, dirigida aos deuses. A quem ia a bordo, não restou outra alternativa senão ressarcir-se do susto e exibir os dotes de bom nadador para se acolher a uma ou outra das embarcações, das muitas que se tendo aproximado, logo tinham posto os seus remos a ciar furiosamente, para lestas inverterem a manobra, e em marcha a ré, «a toda a força !», se afastarem do volteio da Nau, para colocados a bom resguardo, parada a



fig 11 – A Nau de quilha ao portaló

Nau, fundeada no lodo, regressarem apressados, desta vez para acolher os náufragos de tão curta viagem.
Estranha onda de desalento se seguiu à incredulidade dos primeiros momentos ; o silêncio dos que estavam em terra com o infortúnio estampado nos rostos, era apenas cortado pelas imprecações vindas das embarcações, no lufa-lufa de meter a bordo os forçados «banhistas».
(cont)

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

(Fascículo 14)











fig 7 - A Nau pousada na água


O castelo da popa era mesmo sumptuoso, desenvolvendo-se por três cobertas. Entalhado por mão segura e hábil de artista virtuoso, mostrava-se no painel posterior o escudo Nacional - imperioso e imperial - talha rica nos pormenores, sobreposta aos varandins dos aposentos da Oficialidade suspensos sobre o mar, onde em dias de calmaria se poderiam, certamente, embebedar os olhos de visões oníricas longínquas, perdidas na imensidão do mar. Tudo resplandecia em grandeza esplêndida.



fig 8 - O castelo da popa

Diria quem teve acesso ao seu interior, que os Salões eram ainda mais deslumbrantes, soberbos nos lustres artisticamente pendurados do tecto ou suspensos nas divisórias cuidadosamente envernizadas, cortinados de damasco, como apenas se nunca se vira em palácio Real.Escadaria com balaústres cuidadosamente torneados em pau santo acetinado, sobre os quais repousava corrimão para doce amparo no acesso à cabina capitania.

Tectos ricamente almofadados com talha dourada eram suportados por colunas de sustentação escondidas por folhas de parra, entalhadas, de





fig 9 - O interior sumptuoso da Nau


onde ressaíam cacheiras prenhes de redondos bagos. Tudo executado à goiva sobre o avermelhado e lustroso pau Brasil, num manancial de beleza prodigiosa, profusamente semeada com requinte de minúcia por artista pródigo, no rigor e na perfeição.
Entrada na água, a Nau fendeu-a com soberana elegância, parecendo sentir a carícia da sua frescura correr-lhe por sob as formas redondas das suas obras vivas. O deslize foi tão perfeito que mais pareceu não mergulhar nas suas profundezas, mas sim, pairar ao de leve pousada sobre a sua superfície. Até que, esgotada a inércia, altiva e elegante, soberana, parou. Posta em bom enquadramento para fotografia destinada a álbum para a história, momento avidamente aproveitado por atentos caçadores de imagens para seu registo, para a posteridade. Para lá de histórico, seria único! Porque momento de apanhar a Nau em tão garbosa postura, na sua assombrosa realeza, iria apagar-se num breve minuto, mesmo antes de esvaídos os clarões dos primeiros flashs das máquinas de fotografar. Iria ser breve, fugaz... e irrepetível.

(cont)

quarta-feira, 28 de novembro de 2007










(fascículo 13)

fig 6 - A Nau entra na água


- "Velocidade demasiada", cogitava naquele preciso momento, desassossegado, o Mestre Manuel Maria Mónica.
Os gritos da multidão, as palmas, as exclamações, os urrah..!, estoiraram, provindos daquelas gentes que nunca tinham visto maravilha maior.
De facto uma embarcação a descer na carreira, é algo de semelhante a uma criança a escorregar do ventre materno ; a água aguarda-a, como a «aparadeira» aguarda o recém nascido : - abrindo-lhe os braços, acolhendo-a com todo o jeito, desvelo e cuidado. E o choque do seu encontro com a água, a frescura que perpassa por toda a obra viva, é o açoite dado a recém nascido para o despertar para a vida que então começa.
Quieta, espelhada e macia, reverente e atenta, a água da laguna fez pois o seu papel, abrindo-se, convidativa, para dar passagem à Nau e acolhê-la no seu seio, serenamente. A aragem - pouca coisa - era contudo a bastante para desfraldar os pendões da Ordem de Cristo, a cruz do templo, exibida no cimo dos mastros, bem à vista de todos. No porta estandarte, a ré, baloiçava a flâmula real monárquica, branca, com as torres encimadas por uma coroa, não apenas digna dum Rei, mas sim, de um «Senhor do Império». Exactamente os símbolos que as outras irmãs suas, de antanho, as naus das armadas das «Índias e dos brasis», tinham, elas também, hasteado. Nuns casos, com suprema ufanação a amigos ; noutros com ostentação soberana, e como aviso sério, a inimigos.
Em terra uma embarcação é um corpo estático impressionando desde logo pelo seu volume - caso da Nau - ao vislumbrar-se em toda a enormidade as suas obras vivas. É feita, contudo, para pousar na água, onde adquire e exibe, toda a elegância das suas linhas : - «diz-me» como pousas na água e dir-te-ei que barco vais ser, assim o diziam os entendidos em muitos saberes marinheiros. E linhas mais harmoniosas, desenvoltas, e simultaneamente mais suaves e elegantes, como nunca se tinham visto.


(cont)


sábado, 24 de novembro de 2007

(fascículo 12)

2 - BOTA ABAIXO

O representante do Regime parecia ter aqui encontrado o lugar ideal para sermonário adequado ao intento de revivificar o destino Pátrio. Oratória arredondada, palavras enredadas umas nas outras, inflamadas e exaltadas no fervor. Que a partir de determinada altura, subindo de tom, voaram extravagantes - a ponto de chamar à Nau, a «Esposa da Pátria»! - e soaram desmedidas quando enveredaram pelas promessas seguras (?!) do regime :
«Pão (farto) para os trabalhadores» - que feita a Nau nem por isso acharam fartura na retribuição,
«Paz para o povo» - que por sinal se começava a mostrar bastante inquieto com o alongar do palanfrório, e a que pouca importância concediam, até porque se não ouvia,
«E muitos fffs - Fátima, Futebol e Fado», as três «vitualhas» que pensava o ilustre Governante, seriam suficientes para um bom português

fig 5 - O imponente castelo da Popa

ficar empanturrado e deleitosamente agradecido, à sina de, por aqui ter nascido, neste cantinho sortudo, na beira mar encalhado.
O «Viva Salazar!!!» com que encerrou o palanfrório, mereceu uma resposta pouco condizente, se comparado com «O Viva Portugal», que pareceu ter desencadeado os mais escondidos orgulhos naquelas gentes que logo responderam - agora sim, em uníssono ! - em alto vozear,
«VIVÒOO!!!…».

Já S. Exª rev.ª, O Bispo, entregara o báculo e empunhara o hissope, aspergindo em gestos compassados da mão, de cima para baixo, da esquerda para direita, enquanto solene esporteirava o latinório :
«Et benedictio Dei Omnipotentes, Patris et Filii Spiritus Sancti»….
Tinha chegado a hora.
O Mestre deu ordem para se libertarem as talhas que seguravam a embarcação, que solta, liberta, desata a escorregar pelo plano inclinado. Primeiro suavemente, depois acelerando centímetro a centímetro, metro a metro, acompanhada por um burburinho vindo da multidão, assombrada com a imponência de um barco a movimentar-se, célere e imparável, à procura do seu elemento natural.

(cont)

terça-feira, 20 de novembro de 2007

(Fasciculo 11)


- “Que não, …não temesse…” chegavam-lhe vozes provindas de quem se dizia, saber muito! E que do alto do mesmo afirmavam, que o «Metacentro» estaria ainda em nível seguro, mesmo depois de realizada a operação de aliviar lastro.
Não sabendo bem o significado «exacto» do palavrão, o Mestre sabia, contudo - de saber experimentado - o que o mestre Zé Bola «da sala do Risco» lhe sussurrara ao ouvido, havia que tempos. E isso era bastante para desassossego e motivo de uma certa inquietação. De facto,
…antes de traçar no chão da enorme sala de risco as formas que permitiam tirar o molde ao cavername, era habitual fazer-se um modelo da embarcação, em escala reduzida, no qual se marcavam os cortes transversais, deles extraindo as curvas reais do cavername que traçadas na sala de risco à escala natural eram dali transportadas para o corte. O modelo, tinha assim, para tal fim, sido executado em pau santo.


CAPACIDADE



No final do Séc. XVII e inicio do Séc. XVIII, a tonelagem de uma embarcação media-se em TONEIS.
Havia ligeiras diferenças, conforme o tipo de liquido armazenado (azeite e ou vinho)
Em Portugal um Tonel correspondia a 1.250 litros
Em Inglaterra o «Wine Ton» correspondia a 1.144,08 litros .
A Tonelagem total «peso de água deslocada» era medida assim pelos tonéis embarcados, acrescentando-se a este valor mais um terço da carga.
Como fórmulas aproximadas, era usado:
Espanha e Portugal

½ boca x calado x comp coberta 19
Tonelagem = -------------------------------- x --
8 20
Inglaterra
Comp. quilha x boca x calado
Tonelagem = ---------------------------------- x (1+1/3)
100

( Quadro 2)


Mas o mestre «Zé» que dedicava gosto especial em guardar para si uma réplica do mesmo, fez um outro, em tudo idêntico, só que, desta vez, elaborado em madeira de pinho por questão de facilidade de trabalho, pois é madeira muito mais macia, mais fácil de aparelhar.
Ficou espantado, quando, ao colocar os dois modelos no tanque para apreciar o caimento e a linha de água, constatou, intrigado, que o modelo feito em pau santo flutuava bem, enquanto o de pinho, de imediato, se tinha voltado, e deitado na água (do tanque) a todo o comprimento do casco. Pensou para si no porquê (?). E apenas, entre dentes, abordou o acontecimento com o mestre Manuel Maria, que o descansou :
- Isso lastra-se…
E a conversa morrera aí.
Só que no dia de todos os acontecimentos, no espírito de Mestre Manuel Maria, aquele facto viera-lhe por diversas vezes à ideia, apoquentando-o, trazendo-lhe ralado desassossego.
- O lastro mínimo com o fim de limitar o calado, seria suficiente para garantia da estabilidade ?... perguntara-se, vezes sem conta, a si mesmo, o inquieto Mestre.

(cont )

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

(fascículo 10)


Características principais da Nau Portugal

Comprimento - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 42,200 m
Boca - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 11,400 m
Pontal (do fundo da carena - a meio - à linha recta
dos vaus do pavimento superior--------- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 7,500 m

Calado inicialmente previsto :
Calado final : - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 3,12 m proa e 4,52m à pôpa
Nº de canhões : - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -48
Nº Mastros : - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 3

Quadro 1

Certo é que, naquela manhã festiva, Mestre Mónica se sentia inquieto. Logo desde muito cedo tinha subido e descido a escada de acesso ao convés, tantas vezes que já lhe perdera a conta ; desde o nascer do sol que Mestre Manuel Maria (já) investigara todos os pormenores com extrema minúcia, em especial, a carreira e o carro do deslizamento, inspeccionando atentamente as talhas de fixação que prendiam a nau e a mantinham imobilizada. Acontecera-lhe dar com o olhar, por vezes -demasiadas vezes - pousado no bojo arredondado, sem dúvida enorme no porte em confronto com as delgadas e pronunciadas saídas de água, à ré. Porquê ?! : - talvez não o soubesse explicar. Dedicou mesmo especial atenção ao trancamento do leme, de modo a que este não empachasse na água, aquando da entrada da Nau, na ria.
Em todos os momentos que antecedem o «bota-abaixo» era normal que o Mestre fosse possuído por nervoso miudinho. Lançar um barco de centenas de toneladas, carreira abaixo, era um exercício de risco assumido ; vê-lo fender a água, vertiginosamente impulsionado por toda a inércia transformada em movimento acelerado, era de arrepiar os cabelos. Para o Mestre, porém, era coisa que lhe não bulia em demasia com os nervos, apenas era capaz de criar algum desconforto pois que sabia bem o que saía das suas mãos. Contudo, naquele dia, algo - o quê (?) magicava…- estava a ser diferente…
A verdade, era não ser aquela uma obra vulgar ; ela era, sem dúvida, o feito da sua vida, uma daquelas passagens que fazem a distinção entre o vulgus e o suserano, entre o imémore e o perpétuo. E por isso se sentia, naquele celebrado dia, algo diferente do habitual, inquieto mesmo.
Feito um rápido cálculo ao deslocamento, de uma maneira expedita e aproximada, concluíra-se haver a hipótese de o deslizamento sobre a água, atirar a embarcação sobre o bordo norte do canal. Que era de lodo - logo se disse - assim tranquilizando os receios de tais conjecturas e avisos. A mais, sendo fundos pouco consistentes, se tal sucedesse, facilmente a embarcação abriria cama suficiente para neles «apoitar».
Mas, à cautela, retirou-se lastro à Nau, limitando-se assim, tal risco.
Com esta acção aligeirara-se o calado ; era certo. Mas o Mestre não ficou sossegado. Sabia que com este procedimento se poderia estar a correr ao encontro de um outro risco, esse bem maior do que o possível encalhe. Muito maior!
(cont)

sábado, 10 de novembro de 2007

(fascículo 9)
1.5 - INQUIETAÇÃO NO MESTRE

Mestre Manuel Maria Mónica, construtor naval já então afamado, tinha crescido a ver nascer navios ; já vira certamente nascer tantos, quantos os anos que somava de vida. Desafiado para concretizar tão descomunal obra -a da «Nau Portugal» - não teria precisado de muito tempo par dar resposta positiva a tão desarcada e colossal, como desafiante e temerosa empreitada, mas para a qual se sentia plenamente à altura. Talvez dito de outro modo : mestre Mónica sentia-se mesmo talhado par a mesma, ou até para ela predestinado, pois que se a obra era grandiosa e vasta, basta era a sua prática, e seguro o seu saber. Próprios de um mestre exímio na arte, daqueles que nascem com o prodígio de precisarem, num simples olhar, o jeito suficiente para afagar um corte, de modo a que o tabuado se ajuste, doce e aconchegado ao cavername, permitindo que o costado nasça macio e se desenvolva donairoso. Lindo para se ver, mas e também, lestos para navegar.
Os veleiros saídos da mão de Mestre Mónica tinham seguros, reputados e afamados dotes, por demais conhecidos. Robustos o bastante para resistir a todas as imprecações do mar, fossem elas de que tipo e dimensão fossem, e por mais danação que aquele tivesse, ou estramboto mostrado ; belos e equilibrados no poisio na água, e finos, capazes como poucos, de boas e despachadas singraduras.
Era porém certo que no caso da Nau tinha havido pouco tempo para um projecto cuidado e rigoroso, que obedecesse a detalhes técnicos precisos, para se cumprirem as boas práticas da construção naval. Tomada a decisão política para a construção da Nau, pouco se tinha feito para lá de, em termos gerais, se decidir a reprodução de uma embarcação igual a tantas outras que se teriam construído no passado, réplica dos galeões que nos Séc. XVII e XVIII tinham povoado os mares - todos os mares de todos os oceanos - cruzando-os, em incessante tarefa de carrego de riquezas, de ouro, jóias, sedas e especiarias, ou em acto de corso predador, fazendo-as passar num ápice de mãos reais para as mãos de ambiciosos e obscuros desígnios.
Para dar corpo à Nau elaborara-se, apenas e só, um esboço aproximado, um bosquejo de um plano geral de formas, confiando-se negligentemente - muito mais do que a boa intenção aconselharia - no saber do Mestre Mónica, o qual teria exigido pouca pormenorização das carenas, e ou, dos cálculos e traçados complementares, sendo-lhe bastante um conceito geral das formas requeridas. Pareciam os promotores -isso sim! -, muito mais preocupados com o imperiosamente majestático, sobrante de deslumbro impante, encarregando de tal cometimento, Leitão de Barros, o encenador oficial dos grandes momentos de fausto do regime, para o tratamento artístico do interior, que se pretendia, soberbamente rico.
(cont)

terça-feira, 6 de novembro de 2007

(fascículo 8)


1.3 - NERVOSISMO EVIDENCIADO NO MOMENTO DECISIVO


Pairava natural nervosismo : corriam de «boca a ouvido», uns certos rumores sobre os reais atributos de estabilidade da Nau, provindos certamente de maléficos incréus que espantados com aquelas obras mortas esguias que à ré subiam por ali acima, alcandorando-se a alturas inexpectáveis, murmuravam:
- Desmesuradamente «alevantadas» : …visando encarvoar a obra.
Para mais sendo certo que tais formas contrastavam com a habitual linha rasteira do pontal dos lugres bacalhoeiros, que, finos e esguios nos enlaçamentos, macios e alongados de linhas, eram por estas bandas construídos, e aqui «botados» à água, aprontando-os para o cumprimento de insubmissa e árdua missão, nos mares gelados do Atlântico Norte, na Faina Maior.
Exagero de comentário tal desmesura ? Verdade (?!)... ou simples ditos badalados no jeito - eu bem dizia !... -, aviso tão costumado na conversa pós-consumação, quando, «trancas à porta», não são mais do que mera inutilidade, chuchurreio desperdiçado depois de casa esbulhada.
Adiante… que a maré não espera por «pescador»...


1.4 -… E A NAU CORREU PARA A ÁGUA

A maré repontava. Não se poderia perder o momento que antecede o seu espraiar, no descanso que antecede a viradeira, altura em que sossega, apostada em quietação merecida, depois da meia dúzia de horas na trabalheira incessante de carregar água para dentro das cales e canaletes, quais veias que levam a água a todos os cantos do paul lagunar.
Cálculos rigorosos tinham sido levados a cabo, no intuito de determinar o exacto momento da «preia-mar», porquanto os responsáveis tinham alguma preocupação sobre a fundura do canal, ser ou não, suficiente, para aceitar o calado exigente da Nau, notável e invulgar, excedendo tudo quanto até aí se tinha posto, por estas bandas, a flutuar.

(cont...)

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

( Fasciculo 7)
1.2 - BOTA ABAIXO


Era pois hora - porque o acto tinha tempo contado ao minuto para consumação - para a chegada do Bispo. Vulto egrégio, indispensável a actos de exaltação do regime, no caso vertente, com mor razão, pois era pretendido que a cerimónia recuperasse, encenasse e se revisse, na bênção dada à armada de Vasco da Gama, em Belém, antes da partida para a demanda das Índias. Paramentado a rigor, envergando as purpúreas vestes retiradas de arcazes bolorentos, propositadamente para a festa, D. Manuel de Lima Vidal empunhava com solenidade o báculo, enquanto ajeitava no curropito da cabeça a mitra, que lhe conferia, ainda, maior distinção. Vinha ladeado pelos acólitos transportando o hissope dentro do caldeiro que continha Água-benta, tão benta como a que foi usada na Capela de Stª Maria de Belém, havia quase meio milénio, e com que S. Rev.ª, o Bispo de Lisboa, Monsenhor Cadilhe, em presença de El-Rei Venturoso, tinha ungido as naus de Vasco da Gama, antes das mesmas se engolfarem no mar tenebroso, infindo. Pretendia-se repetir - ipsis verbis - o simbolismo do acto de antanho, desta vez, não para iniciar nova epopeia, mas agora, para afirmar a senda de paz, concórdia e progresso, prometidos por Salazar.
No antigamente as naus partiam para novos mundos confiadas ao saber e ousadia da gesta capitania, não sem que a tripulação fosse reconfortada pela bênção divina, concedida em retribuição do propósito de levarem os ensinamentos da «palavra de Cristo» até às longínquas paragens do Preste João. Agora, quando já não «havia novos mundos para dar ao mundo», nova lição havia, contudo, para oferecer : a da reafirmação (simbólica) da decisão inabalável de os manter, em unidade pátria.
Praticamente, em simultâneo com o Rev. Bispo, chegaram os «Senhores do Regime».
No pavimento do estaleiro, mesmo em frente da proa majestosa da Nau - um prodígio de enormidade bela! - distinguia-se sitial engalanado com acolchoados de damasco, coberto por dossel aprimorado, digno de tribuna real. Aí se resguardavam «os graúdos» do ressumar provocado por canícula poderosa que fizera questão em comparecer ao grandioso espectáculo. Ao lado, em avantajado palco, armara-se banqueta para o maestro da banda, que pronta, desejosa e até impaciente, se dispunha a atacar os acordes de « A Portuguesa», quando, chegado o clímax, a embarcação deslizasse nos ensebados carris, carreira abaixo, assim que recebido o sinal de largar : - «BOTA !...».
De um grupo de gentis e noviças donzelas virgoleiras, brotou um coro bem ensaiado do «ÀS ARMAS! ÀS ARMAS !» arrebatando o povoléu já contagiado pela exaltação patriótica, dando mostras de impaciência pelo início do acto da «ascensão» da Nau às águas.
Para bordo tinham subido uns tantos funcionários do estaleiro, os precisos para safar os cabos da manobra, e, ainda, a mestrança que deveria levar a Nau para Lisboa.
(...cont)

domingo, 28 de outubro de 2007

Fasciculo 6

1.1 - CHEGADA DOS MAIORAIS


Pairavam as pequenas embarcações ao largo da carreira onde a Nau repousava, remos chapinhando na água, aguardando o momento do deslizamento da dita pelo ensebado plano inclinado, quando chegaram apressados ao Estaleiro os «grandes dignitários» : - da igreja e da politica. Um «casamento» de livre vontade assumido, que se pretendia perfeito, entre um catolicismo bolorento e o nacionalismo salazarista, unidos para os bons e maus momentos, em aparo mútuo, escondendo na intimidade, ligeiros sinais de discordância, aqui e ali, pontualmente sentidos, pois que Salazar, avaro, pretendia mais que a Igreja servisse o Regime, do que o contrário, como desejado pela ala mais radical de uma igreja ainda então, com resquícios de fortes tiques miguelistas.
O primeiro a chegar - como lhe competia - tinha sido o Presidente da Câmara da Vila. Pudera!... ter sido esta terra a escolhida para a tamanha tarefa da construção da Nau, pela destreza e sabedoria acumuladas das suas gentes, era coisa bastante para encher o ego de qualquer político local. Gentes que eram rebentos da mesma cepa, daqueles outros de antanho que desde os primeiros passos da nação - quando estes eram, ainda, tímidos e trémulos, mas nem por isso menos ousados! - já tinham dado provas de saber, arte e engenho, suficientes, no manejo do machado e da plaina para armar valiosa frota, como aquela que demandara Ceuta, na que foi a primeira grande aventura da adolescência pátria. Por isso, o senhor Administrador de tão «ufano» Concelho, cumprindo a rigor o papel de anfitrião, chegara cedo a fim de receber os ilustres visitantes, gente graúda e ilustre, a precisar de tratamento piscativo, fosse este mesura reverencial, salamaleques de ocasião, ou catarata verborreica - verbi gratia - no que, diga-se em bom abono da verdade, o sr. Administrador, homem culto, não era acanhado, nem peco.
Gentil anfitrião, mandara mesmo atapetar de flores o caminho tosco de acesso ao estaleiro, polvilhando-o com fofas e delico-doces pétalas de invasivo perfume, num gesto acolhedor, aprimorado e fidalgo, de bem receber.

(cont)

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Fasciculo 5




Fig 2 - O Povo rodeia a Nau


e concórdia, e em respeito mútuo pelas diferenças. «Um exemplo a dar ao mundo», esse era o «recado» que Salazar pretendia enviar para fora de portas.
A referida exposição, uma festa que se queria popular numa versão paternalista da história, cumpriria o ritual de simbolismos da portugalidade , concedendo ao regime um tónico de confiança em si próprio, entrevisto na afirmação da uma capacidade realizadora que pretendia imitar os grandes da Europa , embora, valha a verdade, dizê-lo , ressunta a pura acção propagandística.

Mas a existência (dum povo) dentro da ilusão, é, em certas circunstâncias, quase tão perfeita como de uma realidade pura se tratasse. Alimentar essa ilusão através de sedativos propagandísticos, os suficientes para anestesiar a ideia colectiva ,é tarefa que ainda hoje se não descuida ,quanto mais naquele tempo onde as virtudes eram encenadas, porque falsas, e as desventuras das gentes, um fardo terreno advindo do pecado original ,que havia a pagar com «trabalho ,fé e ordem».

(continua)

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Fasciculo 4


A «Nau Portugal» imponente, soberba e majestática, elevava-se na carreira, exibindo o seu casco preto , redondo ,a que um debrum branco conferia suprema elegância .Sobre o convés, erguia-se a altura que parecia descomunal, um enorme castelo de popa; das cobertas emergiam três poderosos mastros sustidos por enxárcias, grossas como punhos , parecendo esperarem por possante velame que, como os de outrora, fizeram destes galeões verdadeiras lebres do mar. Na proa estendia-se a gávea , pau de giba avançado, em forma de cruz, com o propósito de conferir mais poder vélico , e assim permitir, singradura mais segura e ponteira.
Parecia que nas entranhas da Nau “ batia o coração da pátria, a voz de oito séculos que não se calava” ,
Assim perorou S.Exª o Rev.º Bispo, não se podendo, por bom aviso , aqui ter a certeza se a convicção lhe viria de sábia auscultação ,se por exclusiva hiperbolização oratória, admissível nestas ocasiões consagradas. Verdade indesmentível, essa era, a associação que o regime de Salazar pretendia fazer da Nau, tornando-a um símbolo, uma fénix renascida, emergida para reencarnar a acção civilizadora da «Pátria Portuguesa», numa encenação com que se visava sugerir o reeditar da epopeia da gesta colonizadora de outrora. Uma reafirmação da visão nacionalista do « Império», de que Salazar se julgava ser o último guardião, e com a qual se propunha desviar a atenção dos ataques exteriores - e de alguns tímidos espasmos interiores – que, escapados à malha apertada da censura, se começavam a fazer ouvir, pondo em causa a pretensão da afirmação - e manutenção - de uma pátria , una, que se estendia do Minho a Timor. Um Só Povo; uma só Nação- propalava o regime à época .E um só rosto, o de -Salazar! - imagem de predestinado para o cumprimento de uma missão superior, a de dar corpo ao desígnio de continuidade do Império, uno.
Para tal desiderato a Nau a fundear na doca de Belém, serviria de «âncora» à grandiosa «Exposição do Mundo Português«, estrondosa, impante e charmosa comemoração histórico - patriótica (bem recheada de simbolismo na comemoração dos 800 anos da fundação da Nacionalidade (1140), e dos 300 anos da Restauração da Independência -1640), que se pretendia, viesse a ser, veiculo privilegiado de afirmação das virtudes (?!) do regime corporativo, pretensamente o garante do destino herdado na «mensagem» dos seus maiores.
Acção propagandística para uso interno – com que era suposto regenerar e revigorar o regime - mas e também, apostada em ser notada e referenciada no exterior, num momento em que turvas nuvens se adensavam sobre o espaço europeu ,prenunciando um período de conturbado conflito que iria de novo deixar um rasto de morte e destruição, por toda a Europa. Esta iniciativa portuguesa daria uma imagem de unidade , de paz e progresso, internos , enviando um «recado» para o exterior no sentido de consolidar a posição neutral, que Salazar, astuciosamente, pretendia afirmar, ao permitir apenas a presença do Brasil no certame. A «Exposição do Mundo Português» ajudaria - essa era a intenção – a criar a ideia de um Portugal alheado, embora na realidade não o fosse tanto, das disputas ideológicas dos blocos europeus, já então envolvidos no limiar de um conflito generalizado, que transformaria a Europa no palco sangrento onde se desenrolou a 2ª Grande Guerra Mundial.



fig2- A Entrada da Exposição

Da acção de promoção do evento – encenação caseira das Grandes Exposições Mundiais -, se encarregaria a Comissão de Propaganda de António Ferro, criada para trabalhar e fazer passar a ideia de aqui morava «uma só Nação, una e indivisível , pluricontinental», estendida da Europa a Timor, habitada por «um só Povo vivendo em paz e concórdia», sob protecção de um eleito . Pátria que exibia a singularidade de ser capaz de absorver o paradigma da convivência de raças , credos, etnias e culturas, diferentes, vivendo em - completa (?!) -paz.

Cont...

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

(continuação do ultimo blog)

Lá para os longes - tão límpidas estavam as serranias –distinguia-se o Caramulinho recortado no lilás opaco dos montes, e neles encavalitado, talvez, para assim melhor se distinguir e, desse modo, melhor fazer notar o esplendório da sua forma arrebitada. Tanta fundura permitida ao olhar, naquela manhã, fazia adivinhar que bem perto do montinho , ali para os lados de Bolfiar , o S.Geraldo , orago de muitas, variadas e comprovadas virtudes, «santinho» com trato próximo e privilegiado com estes gentios da laguna - que lhe rendiam fiel e assídua visita ,para lá valiosas e floridas prebendas em troca da sua intercepção nos trautos terrenos!... – não deixaria de estar atento. A cogiar os preparos que os seus habituais devotos - naquele dia esquecidos da sua virtude de santo tão milagreiro-e zelando,paternalmente , para que nada de importante fosse esquecido ,antes de rumarem a «outro altar», onde luzia, esplendorosa ,a Nau Portugal. Apesar «de Santo» ,mal adivinharia o orago o cambo de promessas que horas depois iria receber, em troca da sua intercepção e colaboração para a milagreira tarefa do :- «ergue-te ..e navega».Lá iremos…
Certo é que a natureza se esmerara, vestindo as mais belas roupagens ,maquilhando-se com as mais belas cores retiradas da paleta celestial, assumindo o mais caloroso propoimento de adequado contributo para que o acontecimento tivesse a presenciá-lo uma moldura humana, em acordo com a dimensão simbólica, que era pretendido emprestar ao mesmo.



fig1- A «Nau Portugal» na carreira


Afadigaram-se as gentes da borda d’água, instigadas pelo acontecimento prometido – e convidados pela bonomia da natureza - a enxamear os canais, esteiros e canaletes, todas as veias de água desenhadas na epiderme lagunar que despejassem para a cale da Vila, embarcando em tudo, quanto capaz de flutuar e carregar no seu bojo a catrefa do povoléu ribeirinho desejoso do espectáculo anunciado. .Todos , açoitados pela curiosidade, pretendiam ser testemunhas vivas do «sucesso» que desde há muito vinha sendo anunciado no sermonário - famas volat !-, nas prédicas habituais das missas das matinas, em que era relevado o seu significado pátrio, excedendo em muito, o mero acontecimento local..
O Portugal de antigamente, o «Portugal das Descobertas» , aquele - esse mesmo! - que tinha defrontado e humilhado o Adamastor, e arrostado com tormentas e procelas para chegar ás Índias e aos Brasis ; o Portugal das naus dos gamas ,cabrais e albuquerques, ícones pátrios (verdadeiras ilustrações de «demência heróica») que tinham afrontado os mares nunca dantes navegados – nem sequer pensados existirem – iria «marear» de novo. Agora embarcado na réplica de uma dessas naus, ali construída pelo Mestre Mónica – deus «terreno» da enxó, capaz de com ela fazer, de um pinheiro um palito : - quanto mais um barco! .

(continua próximo blog)

terça-feira, 16 de outubro de 2007


A NAU PORTUGAL


…. « de quilha ao portaló»



















SENOS DA FONSECA
2007








1 -PREPARATIVOS

Dia 8 de Julho, de 1940.
O dia para a festa do bota abaixo da «Nau Portugal » não tinha sido escolhido ao acaso. Precisamente nesse dia, perfaziam-se 443 anos da data em que a Armada de Vasco da Gama partira para a descoberta do Caminho Marítimo para a Índia.

Nascera soalheira a jorna. O sol madrugara .E logo que alcandorado ao cimo dos montes, despejou o «seu doirado» sobre as águas serenas da laguna a que uma suave brisa provocava um enrugado e inquieto chocalhar; corriam tão subtis e remansosas, as águas , que pareciam não ter pressa em cumprirem o calendário lunar. Um sol liberto das barreiras das serranias ,já poderoso, descarregava dédalos de luz sobre toda a área lagunar, reflectindo-se no lençol de água que um inquieto marulhar tornava espelho multifacetado a dispersar raios fulgurantes, semeando-os em todas as direcções. Miríades de fogachos estonteantes, estrelejavam, ora se demarcando ora se confundindo na superfície das águas conferindo-lhe uma luminosidade estonteante capaz de ferir o olhar do menos precavido para com tamanha cachoeira luzente . O céu, de uma limpidez azul turquesa sem mácula de nuvens, parecia seda macia cerzida em fina feira capaz de lhe retirar os últimos cirros .O que permitia pensar, ser a ausência daqueles, intervenção dos anjos celestiais ,eles também parecendo apostados em deitar um olhar curioso ao acontecimento, não querendo, por isso, entraves para o seu bisbilhotar. Que os anjos «não tendo costas», não está provado que sejam cegos, pois, se o fossem, não poderiam ao fim da jorna contar as « suas ovelhas» ,e assim, descortinar alguma tresmalhada.
Aquele «oceano» infindo por onde à noite navegam estrelas vadias, pirilampos inquietos dispersos na imensidão à procura de esconderijo, tinha, naquela manhã estival, virado céu luminoso coalhado de gaivotas grazinas, ziguezagueando em continuo esvoaçar na procura de vitualha com que quebrar o jejum nocturno. Até ao momento em que , descortinado lá em baixo o xarabaneco que imprevidente tinha vindo espreitar à superfície - também ele no desejo de se confortar com um pouco de sol sobrante - logo se deixam cair, desajeitadas ,esvoaçantes ,qual tordilhão atingido por tiro certeiro de caçador a aterrar de corpo inteiro no montado. Quando na verdade se trata de um mergulho sobre a presa entrevista ,picanço de precisão certeira , milimétrica, a tempo de abocar o imprevidente que acaba esmagado no bico da gaivota predadora, férrea tenaz de onde, apesar do estrebuchar desesperado, o peixito é incapaz de se libertar.,pagando caro o atrevimento da espreitadela fatal . E mesmo antes de o enviar ,gorgomilos abaixo, a gaivota liga «motores» para, a toda a força, iniciar imediata descolagem, subindo de novo às alturas, pronta para nova emposta piscatória .
A convulsa inquietação provocada pelo estridulo das frenéticas gaivotas, parecia ter despertado a laguna, que mal acordada do seu sono tranquilo, logo se apressou a esparzir a maresia -suave mas penetrante fragrância de algas lagunares, temperadas pelo salgado do meio liquido - sobre os bem aventurados peregrinos que madrugaram ,para não perderem o «bota abaixo» da Nau Portugal. (segue) ....

segunda-feira, 15 de outubro de 2007




JUSTIFICAÇÃO



O Blog «Nau Portugal» pretende dar o seu contributo para as comemorações dos 200 Anos da Data de Abertura da Barra .Porque se justifica ,inteiramente, assinalar a mesma .Dada a importância daquele feito ,sem o qual a paisagem geográfica e humana ,que admiramos ,seria totalmente diferente ,certamente para bem pior.O acontecimento insólito do bota-abaixo da «Nau Portugal», réplica de uma das Naus da Índia que Salazar queria ver integrada na grande «Exposição do Mundo Português»,a ter lugar, em 1940, em Lisboa ,com a qual o regime queria mostrar ao mundo a grandeza do Império, que dizia «ser uno, um só povo numa só Nação»,foi um momento relevante na história da laguna, que hoje se justifica recordar. Ao tempo, então, pouca –ou nenhuma! –notícia, foi dada do acontecimento ,que a censura do regime tentou –a todo o custo- fazer passar despercebido.

No Blog « A Nau Portugal» ,que irá sendo publicado ao longo do período para as Comemorações ,dar-se-ão conta dos acontecimentos de exaltação advindos da grandeza da tarefa de construção da Nau – cometida ás nossas gentes e aqui concretizada – mas e também se dará conta do insólito capotanço da mesma e do sentimento de frustração-e descrença- que originou; relatar-se-ão as tarefas- ingentes e urgentes- assumidas, para se conseguir que, a tempo, a Nau participasse na exposição ,em Setembro,daquele ano .O Blog pretende ser um modesto contributo, a todos os que conceberam e participaram na execução da obra notável de regularização das águas Lagunares, que permitiu o renascimento da vida das espécies que nela tinham o se habitat, do salgado emergente das suas entranhas, depois de um longo e penoso período de atrofia ensombrado pela ceifa de milhares de vidas, advinda da pestilência das águas , devolvendo ,assim ,à laguna, a importância de ser a circunstância das gentes da borda.
Esperemos que seja ,minimamente, apreciado.


Senos da Fonseca