sábado, 29 de dezembro de 2007

(facículo 17)



O Ministro imaginava a cólera de Salazar, personalidade implacável e profundamente arreigada aos símbolos pátrios, que se auto assumia guardião das virtudes da gesta. Pensou - e até previu - o inevitável rolar de cabeças que tal infeliz desfecho para obra tão grandiosa, iria, por certo, despoletar. Até o seu lugar estaria - imaginou ! - comprometido, apesar de peça fundamental, associada às grandes realizações propagandísticas do regime. Salazar não costumava perdoar erros de clara incompetência. E no caso, a mesma, estava ainda associada a incúria negligente, o que, pela dimensão simbólica - e pública ! - do acto, ultrapassava a mera questão de imprevidência. Imperdoável !
No sentido de limitar os danos o Ministro enviou de imediato para Lisboa um telegrama, onde retocou a gravidade do acontecimento. E mesmo sem saber em pormenor, como iria ser, apressou-se a garantir, contudo, que a Nau estaria a tempo de ser exibida em Lisboa, na Exposição, depois de posta a flutuar. O que assegurou, iria acontecer dentro de breves dias (?!). Que se prolongariam por três longos meses.


3 - A ENTRADA EM CENA DO ENGº SALVADOR SÁ NOGUEIRA, DA A.D.G.P.L.

Em Lisboa, já na segunda-feira seguinte ao infeliz acontecimento, o Ministro não perderia tempo em convocar com urgência o engº Salvador de Sá Nogueira, reputado técnico da Administração Geral do Porto de Lisboa -o mesmo que ultimamente dirigira o resgate de vários navios acidentados, e de entre eles, o do rebocador «Cabo Sardão» e da «Draga Alcântara», técnico por isso com larga experiência na matéria - conferindo-lhe plenos poderes e excepcionais liberdades para recrutamento de meios, no sentido de recuperar com a máxima rapidez, a «Nau Portugal». Sem olhar a despesas. Estava em jogo o orgulho nacional, achincalhado, exalviçado, salpicado de lama pelo acontecido, cuja recuperação não tinha preço, nem dilação.

sábado, 22 de dezembro de 2007

(Fascículo 16)


De resto, o silêncio que se tinha instalado em terra era sepulcral - igual ao do peixe no fundo da canastra da pescadeira - entrecortado, aqui e ali por conjuros provindos de uma ou outra boca mais arrebatada, rorejados atabalhoadamente. «O Portugal» que há minutos parecia querer retomar em mãos «novo destino», transformara-se em corpo morto, «baleia» disforme boiando nas águas tranquilas da laguna, que lhe serviam de cama para repouso inesperado.
A majestade já não era. Fora-se, com a cambalhota da Nau. O orgulho do Portugal dos «gama e cabrais», o Portugal do conhecimento, genial criador de navios que mais do que capazes de ir por aí fora - Duc in altum! - sem limites de lonjuras no mostrar de como se poderia navegar contra o vento - de «cara à vela» no volteio de ventos e marés - afundara-se.
O Ministro da Obras Públicas, presente, assombro estampado no rosto, olhava atónito e especado para o desenlace da aventura ; estava pálido, dor acerba e pungente reflectida no olhar aturdido por tamanho infortúnio. Num ápice tinha interiorizado toda a dimensão do problema. Não por temer que este se espalhasse nos jornais ao outro dia ; a máquina da censura salazarista encarregar-se-ia de lhe aplainar os contornos do ridículo.
E assim sucederia, de facto, pois nos jornais do dia seguinte, podia ler-se que o acidente se teria ficado a dever ao facto de uma das talhas dos cachorros da carreira se ter partido, fazendo elevar a Nau, que perdendo (?) o seu centro de gravidade, teria dado origem a uma aparatosa inclinação do barco.
Mas no exterior o acontecimento seria motivo de chacota. E a aparatosa inclinação viria expressa no simples e consagrado dito da «quilha a fazer de portaló».
No jornal local, «O Ilhavense», nada se referia do acontecimento para lá de um artigo da autoria do Bispo de Aveiro, que pouco ou nada se detinha no acontecimento. E nos números seguintes, o jornal limitar-se-ia a umas breves notas sobre a recuperação da embarcação. Resultado do lápis azul da censura a riscar, diligente e pressuroso, tudo o que transpirasse excessos informativos capazes de macularem a intenção do acto. Tal como sucederia com todos os órgãos de informação, escritos ou falados, no País : só pequeníssimas notas, idas no sentido de desvalorizar o acontecimento, eram permitidas pelos esbirros censores.
Fora do País, apesar dos esforços diplomáticos, as coisas espalharam-se de outra maneira, de um modo pouco dignificante e consentâneo para com o nosso lustroso passado de gentes marinheiras, gerações inteiras repentinamente ensombradas por esta nódoa que viera engelhar a sua imagem de quatro séculos de grandes feitos.
Por outro lado, a verdade, dura e crua, mesmo que atabalhoadamente desmentida, era a de que a comparência da Nau na Feira de Exposições estava de todo comprometida, muito embora a censura se apressasse a passar a notícia de que o atraso era de apenas uns simples dias. Aquela que seria a maior âncora, a mais emblemática peça da Exposição do Mundo Português, destinada a glorificar o Portugal do Império, jazia inerte, pousada no lodaçal da Ria, negando-se a comparecer ao encontro com gentes que vindas de todos os lados se preparavam para a visitar, ávidas de ver ao vivo, o que se prometia ser um deslumbre de fausto.

(cont)

domingo, 16 de dezembro de 2007







(fasciculo 15º)






A Nau parou, finalmente travada pela água ; as pequenas embarcações que a aguardavam na ria, pressurosas, afundaram remos para dela se aproximar, com o fito de a apreciarem de mais de perto.
Quieta um minuto, imponente, deu repentinamente para se inclinar para estibordo e, determinada, sem hesitar, parecendo obedecer a forças estranhas - e bem o eram ! - voltou-se num ápice.
«E fez da quilha… portaló», como se diz na gíria marinheira.








f ig 10 - A Nau começa a inclinar-se


Um arrepio percorreu a multidão. Silêncio maior só nos cemitérios. Que logo se tornou em prolongado murmúrio provindo de desalentada imprecação, dirigida aos deuses. A quem ia a bordo, não restou outra alternativa senão ressarcir-se do susto e exibir os dotes de bom nadador para se acolher a uma ou outra das embarcações, das muitas que se tendo aproximado, logo tinham posto os seus remos a ciar furiosamente, para lestas inverterem a manobra, e em marcha a ré, «a toda a força !», se afastarem do volteio da Nau, para colocados a bom resguardo, parada a



fig 11 – A Nau de quilha ao portaló

Nau, fundeada no lodo, regressarem apressados, desta vez para acolher os náufragos de tão curta viagem.
Estranha onda de desalento se seguiu à incredulidade dos primeiros momentos ; o silêncio dos que estavam em terra com o infortúnio estampado nos rostos, era apenas cortado pelas imprecações vindas das embarcações, no lufa-lufa de meter a bordo os forçados «banhistas».
(cont)

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

(Fascículo 14)











fig 7 - A Nau pousada na água


O castelo da popa era mesmo sumptuoso, desenvolvendo-se por três cobertas. Entalhado por mão segura e hábil de artista virtuoso, mostrava-se no painel posterior o escudo Nacional - imperioso e imperial - talha rica nos pormenores, sobreposta aos varandins dos aposentos da Oficialidade suspensos sobre o mar, onde em dias de calmaria se poderiam, certamente, embebedar os olhos de visões oníricas longínquas, perdidas na imensidão do mar. Tudo resplandecia em grandeza esplêndida.



fig 8 - O castelo da popa

Diria quem teve acesso ao seu interior, que os Salões eram ainda mais deslumbrantes, soberbos nos lustres artisticamente pendurados do tecto ou suspensos nas divisórias cuidadosamente envernizadas, cortinados de damasco, como apenas se nunca se vira em palácio Real.Escadaria com balaústres cuidadosamente torneados em pau santo acetinado, sobre os quais repousava corrimão para doce amparo no acesso à cabina capitania.

Tectos ricamente almofadados com talha dourada eram suportados por colunas de sustentação escondidas por folhas de parra, entalhadas, de





fig 9 - O interior sumptuoso da Nau


onde ressaíam cacheiras prenhes de redondos bagos. Tudo executado à goiva sobre o avermelhado e lustroso pau Brasil, num manancial de beleza prodigiosa, profusamente semeada com requinte de minúcia por artista pródigo, no rigor e na perfeição.
Entrada na água, a Nau fendeu-a com soberana elegância, parecendo sentir a carícia da sua frescura correr-lhe por sob as formas redondas das suas obras vivas. O deslize foi tão perfeito que mais pareceu não mergulhar nas suas profundezas, mas sim, pairar ao de leve pousada sobre a sua superfície. Até que, esgotada a inércia, altiva e elegante, soberana, parou. Posta em bom enquadramento para fotografia destinada a álbum para a história, momento avidamente aproveitado por atentos caçadores de imagens para seu registo, para a posteridade. Para lá de histórico, seria único! Porque momento de apanhar a Nau em tão garbosa postura, na sua assombrosa realeza, iria apagar-se num breve minuto, mesmo antes de esvaídos os clarões dos primeiros flashs das máquinas de fotografar. Iria ser breve, fugaz... e irrepetível.

(cont)