sábado, 22 de dezembro de 2007

(Fascículo 16)


De resto, o silêncio que se tinha instalado em terra era sepulcral - igual ao do peixe no fundo da canastra da pescadeira - entrecortado, aqui e ali por conjuros provindos de uma ou outra boca mais arrebatada, rorejados atabalhoadamente. «O Portugal» que há minutos parecia querer retomar em mãos «novo destino», transformara-se em corpo morto, «baleia» disforme boiando nas águas tranquilas da laguna, que lhe serviam de cama para repouso inesperado.
A majestade já não era. Fora-se, com a cambalhota da Nau. O orgulho do Portugal dos «gama e cabrais», o Portugal do conhecimento, genial criador de navios que mais do que capazes de ir por aí fora - Duc in altum! - sem limites de lonjuras no mostrar de como se poderia navegar contra o vento - de «cara à vela» no volteio de ventos e marés - afundara-se.
O Ministro da Obras Públicas, presente, assombro estampado no rosto, olhava atónito e especado para o desenlace da aventura ; estava pálido, dor acerba e pungente reflectida no olhar aturdido por tamanho infortúnio. Num ápice tinha interiorizado toda a dimensão do problema. Não por temer que este se espalhasse nos jornais ao outro dia ; a máquina da censura salazarista encarregar-se-ia de lhe aplainar os contornos do ridículo.
E assim sucederia, de facto, pois nos jornais do dia seguinte, podia ler-se que o acidente se teria ficado a dever ao facto de uma das talhas dos cachorros da carreira se ter partido, fazendo elevar a Nau, que perdendo (?) o seu centro de gravidade, teria dado origem a uma aparatosa inclinação do barco.
Mas no exterior o acontecimento seria motivo de chacota. E a aparatosa inclinação viria expressa no simples e consagrado dito da «quilha a fazer de portaló».
No jornal local, «O Ilhavense», nada se referia do acontecimento para lá de um artigo da autoria do Bispo de Aveiro, que pouco ou nada se detinha no acontecimento. E nos números seguintes, o jornal limitar-se-ia a umas breves notas sobre a recuperação da embarcação. Resultado do lápis azul da censura a riscar, diligente e pressuroso, tudo o que transpirasse excessos informativos capazes de macularem a intenção do acto. Tal como sucederia com todos os órgãos de informação, escritos ou falados, no País : só pequeníssimas notas, idas no sentido de desvalorizar o acontecimento, eram permitidas pelos esbirros censores.
Fora do País, apesar dos esforços diplomáticos, as coisas espalharam-se de outra maneira, de um modo pouco dignificante e consentâneo para com o nosso lustroso passado de gentes marinheiras, gerações inteiras repentinamente ensombradas por esta nódoa que viera engelhar a sua imagem de quatro séculos de grandes feitos.
Por outro lado, a verdade, dura e crua, mesmo que atabalhoadamente desmentida, era a de que a comparência da Nau na Feira de Exposições estava de todo comprometida, muito embora a censura se apressasse a passar a notícia de que o atraso era de apenas uns simples dias. Aquela que seria a maior âncora, a mais emblemática peça da Exposição do Mundo Português, destinada a glorificar o Portugal do Império, jazia inerte, pousada no lodaçal da Ria, negando-se a comparecer ao encontro com gentes que vindas de todos os lados se preparavam para a visitar, ávidas de ver ao vivo, o que se prometia ser um deslumbre de fausto.

(cont)

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