quarta-feira, 31 de outubro de 2007

( Fasciculo 7)
1.2 - BOTA ABAIXO


Era pois hora - porque o acto tinha tempo contado ao minuto para consumação - para a chegada do Bispo. Vulto egrégio, indispensável a actos de exaltação do regime, no caso vertente, com mor razão, pois era pretendido que a cerimónia recuperasse, encenasse e se revisse, na bênção dada à armada de Vasco da Gama, em Belém, antes da partida para a demanda das Índias. Paramentado a rigor, envergando as purpúreas vestes retiradas de arcazes bolorentos, propositadamente para a festa, D. Manuel de Lima Vidal empunhava com solenidade o báculo, enquanto ajeitava no curropito da cabeça a mitra, que lhe conferia, ainda, maior distinção. Vinha ladeado pelos acólitos transportando o hissope dentro do caldeiro que continha Água-benta, tão benta como a que foi usada na Capela de Stª Maria de Belém, havia quase meio milénio, e com que S. Rev.ª, o Bispo de Lisboa, Monsenhor Cadilhe, em presença de El-Rei Venturoso, tinha ungido as naus de Vasco da Gama, antes das mesmas se engolfarem no mar tenebroso, infindo. Pretendia-se repetir - ipsis verbis - o simbolismo do acto de antanho, desta vez, não para iniciar nova epopeia, mas agora, para afirmar a senda de paz, concórdia e progresso, prometidos por Salazar.
No antigamente as naus partiam para novos mundos confiadas ao saber e ousadia da gesta capitania, não sem que a tripulação fosse reconfortada pela bênção divina, concedida em retribuição do propósito de levarem os ensinamentos da «palavra de Cristo» até às longínquas paragens do Preste João. Agora, quando já não «havia novos mundos para dar ao mundo», nova lição havia, contudo, para oferecer : a da reafirmação (simbólica) da decisão inabalável de os manter, em unidade pátria.
Praticamente, em simultâneo com o Rev. Bispo, chegaram os «Senhores do Regime».
No pavimento do estaleiro, mesmo em frente da proa majestosa da Nau - um prodígio de enormidade bela! - distinguia-se sitial engalanado com acolchoados de damasco, coberto por dossel aprimorado, digno de tribuna real. Aí se resguardavam «os graúdos» do ressumar provocado por canícula poderosa que fizera questão em comparecer ao grandioso espectáculo. Ao lado, em avantajado palco, armara-se banqueta para o maestro da banda, que pronta, desejosa e até impaciente, se dispunha a atacar os acordes de « A Portuguesa», quando, chegado o clímax, a embarcação deslizasse nos ensebados carris, carreira abaixo, assim que recebido o sinal de largar : - «BOTA !...».
De um grupo de gentis e noviças donzelas virgoleiras, brotou um coro bem ensaiado do «ÀS ARMAS! ÀS ARMAS !» arrebatando o povoléu já contagiado pela exaltação patriótica, dando mostras de impaciência pelo início do acto da «ascensão» da Nau às águas.
Para bordo tinham subido uns tantos funcionários do estaleiro, os precisos para safar os cabos da manobra, e, ainda, a mestrança que deveria levar a Nau para Lisboa.
(...cont)

1 comentário:

Miguel Lourenço disse...

O que foi feito desta Nau?